Luto

A civilidade como legado

Crítico literário e sociólogo Antonio Candido, dono de uma das obras mais fundamentais da intelectualidade brasileira, morreu nesta sexta-feira aos 98 anos

Fotos Públicas -

O crítico literário e sociólogo Antonio Candido, dono de uma das obras mais fundamentais da intelectualidade brasileira, morreu nesta sexta-feira aos 98 anos.

Ele estava internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, com problemas no intestino. O velório foi no próprio hospital.

Autor de livros fundamentais como Introdução ao método crítico de Silvio Romero (1944), Formação da literatura brasileira (1959), Literatura e sociedade (1965), entre muitos outros, Candido formou uma maneira de pensar a literatura brasileira que influenciou toda a crítica literária do País desde então.

Em 1956, criou o Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, caderno que se tornou paradigma do jornalismo cultural no Brasil.

O crítico e ensaísta se definia como um sobrevivente. "Sou provavelmente o último amigo vivo de Oswald de Andrade, um escritor dono de uma personalidade vulcânica", comentou Candido, em rara entrevista, em Paraty (RJ), onde, em 2011, fez a conferência de abertura da 9ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip. Como o homenageado era justamente o autor de Marco zero, Candido decidiu quebrar seu silêncio - não gostava de ser entrevistado tampouco de fazer aparições públicas.

O ensaísta mantinha fortes lembranças de Oswald (1890-1954) justamente por causa de sua personalidade marcante. "Ele tinha traços de gênio: mesmo não sendo um grande leitor, Oswald captava a essência dos assuntos e discursava como grande entendedor."

A amizade entre eles começou depois de uma crise _ o escritor não gostou de uma crítica escrita por Candido, então um jovem intelectual de 24 anos, sobre Marco zero, romance de 1943. Passado o tempo, o próprio Antonio Candido voltou atrás, a ponto de produzir um longo ensaio em que reconhecia o valor literário do autor. Foi o suficiente para estabelecer uma amizade profunda e sincera, que resistiu até às novas críticas de livros.

O exercício, aliás, era arriscado. Candido comentou que o crítico literário de sua época era obrigado a lidar com nomes que, naquele momento, ainda eram desconhecidos. "Certo dia, recebi um livro chamado Perto do coração selvagem, assinado por Clarice Lispector. Pensei que fosse um pseudônimo, porque isso não é nome de gente, Lispector. Eu não sabia quem era e precisava dizer se o livro era bom ou era ruim. Ou seja, minha responsabilidade como crítico era muito grande, pois lidava com autores como Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, que ainda não tinham conquistado notoriedade. Tive a sorte de viver um tempo de esplendor da literatura brasileira. Mas avaliações erradas poderiam custar o emprego."

Candido lembrou que, em sua época, a crítica era militante e alguns jornais tinham o chamado crítico titular. No seu caso, ele era o do jornal Folha da Manhã, enquanto o do Estado era Tobias Barreto. "O crítico titular tinha muito autoridade, porque representava o jornal. Costumo dizer que a crítica literária daquele tempo era uma atividade de alto risco."

Trabalhou na função durante 24 anos e se orgulhava, por exemplo, de ter escrito o primeiro artigo analítico sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. "Ele não sabia disso. Foi Drummond quem o informou."

Com o tempo, a função de resenhista foi gradativamente assumida pelos teóricos de universidade, que preferiam não correr risco. "Eles escreviam apenas sobre escritores já mortos, com a obra consolidada, o que evitava julgamentos apressados se fosse o caso de autores ainda vivos." Dizia conhecer a maioria, pois foram seus alunos, formando a "paróquia", como gosta de ironizar. "Admiro muito as novas gerações de críticos, todos muito eruditos", comentou, citando Roberto Schwarz e José Miguel Wisnik, entre outros.

Exibindo uma disposição invejável, a que atribui à boa genética, Antonio Candido reclamou, no entanto, de fazer o trajeto entre São Paulo e Paraty. "Isso me ensinou que não posso mais viajar de carro." Também lembrou que vivia "encalhado" no passado, pois ainda utilizava uma máquina de escrever, dispensando computador, celular e outros produtos da modernidade. Também desconhecia o que se produz atualmente na literatura, preferindo a releitura de clássicos. "Faz 20 anos que não leio nada de novo. Prefiro Dostoievski, Proust, Eça de Queiroz."

Socialista, foi um dos fundadores do PT
Candido foi um dos fundadores do PT e jamais renegou suas ideias de esquerda, como virou moda.

Em uma entrevista ao semanário Brasil de Fato, ao ser perguntado se era socialista, assim respondeu: "Ah, claro, inteiramente. Aliás, o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que 12 horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Conversando com um antigo aluno meu, que é um rapaz rico, industrial, ele disse: 'o senhor não pode negar que o capitalismo tem uma face humana'. O capitalismo não tem face humana nenhuma. O capitalismo é baseado na mais-valia e no exército de reserva, como Marx definiu. É preciso ter sempre miseráveis para tirar o excesso que o capital precisar. E a mais-valia não tem limite. Marx diz na Ideologia alemã: as necessidades humanas são cumulativas e irreversíveis. Quando você anda descalço, você anda descalço. Quando você descobre a sandália, não quer mais andar descalço. Quando descobre o sapato, não quer mais a sandália. Quando descobre a meia, quer sapato com meia e por aí não tem mais fim. E o capitalismo está baseado nisso. O que se pensa que é face humana do capitalismo é o que o socialismo arrancou dele com suor, lágrimas e sangue. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo. O socialismo só não deu certo na Rússia."

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